
A situação na escola insistia em piorar, principalmente após as aulas de Educação Física. Ali, sentado, entalado, as cenas insistiam em voltar-lhe à memória: luz amarelosturricante do sol das 3;os garotos em seus calções azuis, meias e camisas brancas encharcadas de suor retornando para suas casas. E o maldito Jurky em sua orelha: "..hei, deixa eu ver, só uma olhadinha...". Como teimava em não consentir, Jurky o atacava com um apelido que o amarrava à uma temida não masculinidade (fosse o que fosse isso). Já pensara em resolver as coisas no braço, mas à época as dimensões de seu algoz o intimidavam, o maldito era um repetente - que significava um burro dotado de mais músculos que os outros; ainda assim tinha ganas de enfrentá-lo. O problema, no entanto, era que pior ficaria se apanhasse: além de ter que explicar em casa, a posição diante de todos pioraria, supunha.
Como nos filmes adolescentes americanos, as brigas entre garotos eram um espetáculo público. Bastava alguém insinuar uma ameaça física e um inusitado ouvinte anunciava : "vai ter briga no fim da aula". Pronto, estava marcado o show. Por vezes as brigas aconteciam mais pelo temor dos contenciosos em ofender as expectativas da patuléia quanto à briga, do que pelo desejo de espancar o algoz; havia uma sensação de impossibilidade de conter essa avalanche de demanda bélica deflagrada. Recuar era se tornar aquele que amarelou, ou seja, a própria mosca do cocô do cavalo do bandido. Portanto, cuidado com as palavras, elas crescem e ganham vida própria.
Jamil sabia, portanto, que um fracasso seria público. Isso era impensável; desde a morte dela, onde ocupara um lugar de destaque naquilo que lhe parecera um excesso de exposição, fugia do foco como o diabo foge da cruz (embora haja quem diga que, na verdade, o chifrudo é obcecado pela mesma; vai saber).
Conceber que poderia ter êxito no enfrentamento (apesar da bem sucedida briga com o João Grandão, que Jamil insistia em deixar fora de seus cômputos), lhe trazia temores. Era uma fase de cheia de 'inhos (medrosinho, pequeninho, filhinho) e os consequentes fracassos destas suas recusas. Optou por fingir que não ouvia. Mas tudo lhe parecia muito duro, os xingamentos e apelidos que Jurky lhe dava entravam e envenenavam a alma.
Também odiava estar no centro do espetáculo. Jamil ainda acreditava em ter que dar a esse Outro o que imaginava estar sendo requerido dele. Vivia no paradoxo entre essa impossibilidade de ação e manutenção da crença. Paralisava-se. Entalava. Não, definitivamente, a briga não era uma saída. A não ser, é claro, que ocorresse de surpresa, traição pura. Não se incomodava com isso; argumentava consigo que estava cansado, que tinha que tentar mostrar que era forte, e que para isto não havia regras. Mais do que tudo, não suportava aquela humilhação toda! Ora, se Jurky não respeitava as regras da civilidade e gentileza, às quais Jamil sempre tinha que se sujeitar, que diariamente lhe eram exigidas, ainda mais sendo filho de quem era.
Melhor assim. Sabia que o Jurky o seguia mais ou menos até o mesmo lugar, sempre. Naquele ponto, o fluxo de garotos já estaria diluído. Pouca platéia. Esperaria um pouco mais para sair, o que reduziria ainda mais o número de testemunhas. Contaria com a ajuda de Rodrigo, que também não gostava de brigas, era educado, mas não deixaria o melhor amigo na mão, principalmente se estivesse apanhando. Achou melhor ser na saída da aula, aproveitaria um desses dias em que o maldito o aporrinhava também em sua ida para casa; o caminho era o mesmo, assim como a estratégia. Entretanto, estaria armado: sua mochila de cdf, carregada de cadernos e livros era de um peso considerável. Era usá-la como um poderoso EL KABONG na cabeça do maldito, usando um salto no vácuo com joelhada. Situações extremas, medidas desesperadas. Pronto. No guts, no glory (mas isto só aprenderia beemmm depois).
O mundo girou.
Flagrado bulinando uma garota num cantinho, perto da quadra externa, ao lado do campinho, Jurky foi suspenso. O pai da mesma ameaçou de morte. Temendo piores consequências, ou pelo fato de estarem de saco cheio do péssimo investimento na educação de Jurky, acabou sendo transferido pelos seus pais para o noturno de outra escola. Iria trabalhar. Não tinha ECA para moderar.
Jamil até hoje acha que ainda precisa aprender uma arte marcial; nunca se sabe quando vai precisar daquele salto no vácuo com joelhada. Há muitos Jurkys por aí.